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O ABUSO DE PODER RELIGIOSO NO PROCESSO ELEITORAL

O presente artigo busca realizar uma análise minuciosa acerca da influência do chamado poder religioso, enfocando a influência da Religião como causa do desvio dos princípios democráticos e legais aplicáveis no processo político-eleitoral.  O abuso de poder, focado na utilização abusiva de uma liderança religiosa para captação de votos, é a que influencia a vontade dos fiéis-eleitores, ou membros-eleitores para a obtenção do voto, para terceiros, para lideres políticos da própria grei religiosa, associados, ou para líderes amigos e de outras denominações, ultrapassando os exemplos taxativamente estabelecidos pelo art. 37, § 4º, da Lei nº 9.504/97, do registro, na pré-campanha, campanha, até a votação.

Muito embora o assunto palpite mais com o fenômeno mais recente, de dois decênios, nos quais denominações neopentecostais passaram a eleger representantes sem o menor desembaraço, com campanhas ostensivas nas suas programações religiosas ou sociais, o tema não é novo: o Brasil enfrentou o tema da laicidade e crescimento dos partidos de esquerda marxista, com a organização de partidos ou chapas eleitorais "cristãs", como a Liga Eleitoral Católica (LEC), no pleito constituinte de 1933, ou mesmo com o aparecimento dos partidos de orientação democrata-cristã, no inicio do século XX, na Europa (como o Partido Católico Belga, o Partido Popolare Italiano ou ainda o Zentrum alemão), e que encontrou terreno fértil na America Latina, a partir dos anos 40.

A DC, enquanto formulação política de centro a centro-direita, e como reação ao comunismo revolucionário latino-americano e ao conservadorismo militarista teve êxito eleitoral no Chile, por algumas oportunidades, a partir dos anos 60, e depois no pós-ditadura, nos anos 80/90, em El Salvador, na Guatemala, Costa Rica, e foi força protagonista na Europa Ocidental, governando, entre outros, Italia, Bélgica e Alemanha.

Muito embora a legislação partidária proibiu claramente a organização de partidos com apelo religioso, nada impediu a organização do PDC, em 1945, ou do novo PDC e do PSC, a partir de 1985.  Nos países islâmicos, o tema é uma tremenda dor de cabeça, já que é extenso o histórica a luta entre partidos da esquerda laica e partidos religiosos, seja no Marrocos, Jordânia (A FAI é o maior partido oposicionista), na Tunisia mais recente (com o Ehnada), na Argélia (que proscreveu a Frente Islâmica de Salvação, após uma acachapante vitória suspensa nos anos 80), na Palestina (com o Hamas, rival da Fatah, laica), da ação da Irmandade Muçulmana no Egito (onde venceram e foram retirados à força por um golpe civil-militar), Iraque, Síria, Libano, Yemen e outros. A tensão no mundo árabe, entre partidos islamitas, e laicos, geralmente de esquerda (como os nasseritas, comunistas, baathistas) é permanente.

No Irã, a vitória dos xiítas na revolução de 1979 excluiu liberais e esquerdistas um bom tempo do jogo político, e até os clérigos reformistas (Katami, Karroubi) somente conseguiram algum espaço, pela via eleitoral. Afinal, a ascenção do AK, partido islamita semidemocrata de Erdogan levou a um nível de tensão inédito na república que se orgulhava de ser uma democracia laica no mundo islâmico e aspirar sua entrada na União Europeia. Mas o voto religioso não se restringe a cristãos, ou a islamitas, já que o Japão possui um ativo partido budista (Komeito, partido do governo limpo), que integra o governo aliado aos Liberais Democratas, assim como na India, o governo é ocupado pelo Partido Popular Indiano (BJP), de inspiração populista e hindu. 

No Brasil, o caso mais famoso de aplicação eleitoral-religiosa é a eleição de dezenas de representantes, entre deputados federais, estaduais e vereadores ligados à Igreja Universal do Reino de Deus, e igrejas neopentecostais que se utilizaram de estratégias parecidas, como a Mundial, Renascer, Quadrangular, com profundo engajamento das lideranças, de intervenção organizada, e a transformação, no dizer de muitos, de templos em verdadeiros comitês eleitorais.

A máquina eleitoral disponibilizada em favor das candidaturas por esta apoiada significava um desequilíbrio flagrante no pleito, já que alem dos elementos mais óbvios, como utilização de meios de comunicação (rádios e TVs ligadas aos cultos religiosos dos candidatos) de forma massiva e organizada, da utilização de funcionários das igrejas, o chamado "poder religioso" deturpou - assim como nos outros casos de abuso de poder, como a utilização abusiva de servidores públicos, do controle de prefeituras municipais, empresas públicas, etc, passou-se a entender que a utilização dos templos e denominações religiosos deveria ser tambem coibido, sob pena de falseamento e deturpação da representação partidária, popular e democrática, princípios constitucionais vulnerados neste tipo de prática ilegal.

Não nos esqueçamos que as igrejas tambem realizam amplo trabalho de atendimento social e comunitário, tem programas sociais e seus líderes granjeiam respeito e muitas vezes admiração popular. Muitas vezes tambem o Poder Público convenia-se com as instituições religiosas que desta forma, atendem a população por suas escolas, creches, orfanatos, lares de idosos e ou ainda, por programas de combate à dependência química.

Inicialmente, o TSE procurou coibir a propaganda irregular com vedações cominadas com multas pecuniárias, mas logo após evoluiu-se para se considerarem os abusos como modalidade de abuso de poder, que poderia ser combatida com a cassação do registro ou do diploma, caso o candidato fosse eleito.

O fato é que as igrejas começaram a ter cada vez mais, um papel saliente e decisivo, como uma especie de partido político, ou grupo organizado influenciando os programas governamentais, e os abusos tambem ficaram cada vez mais evidentes. O valor das multas vai de R$ 5 mil a R$ 30 mil, para os responsáveis e os beneficiários, no caso os candidatos, que poderão ter o registro e o diploma cassados, se eleitos. Além das fiscalizações presenciais, nas igrejas, a Justiça Eleitoral passou a proceder o monitoramento das redes sociais, programas de rádio e de televisão. Denúncias já são comumente feitas aos TREs e ao MP Eleitoral.

A cassação, em 2018, dos mandatos do deputado federal Franklin Roberto Souza (PP-MG) e do deputado estadual Márcio José Oliveira (PR-MG), eleitos no pleito de 2014, e confirmada posteriormente pelo TSE, levantou a discussão sobre abuso do poder religioso, que não era previsto taxativamente na legislação, mas foi suscitado na esteira do abuso do poder econômico, e institucionalizado pela doutrina e jurisprudência eleitoral mais recente. 

No mesmo ano, tambem foi cassado o diploma de um vereador de Limeira (SP), pelo TRE paulista, que retornou ao cargo, diferentemente dos deputados mineiros, por decisão posterior do TSE. Neste novo caso, entendeu-se que o TRE-SP não explicitou, segundo a decisão do Ministro Fachin, relator do recurso quais fatos relacionam o abuso de poder econômico com o abuso de poder religioso. Ou seja, em que momento a igreja utilizou recursos em prol do vereador de "fonte vedada", havendo necessidade, de se explicitar "(..) a relação entre o ato caracterizador de abuso de poder econômico ou uso indevido de meios de comunicação social e as condutas que foram valoradas pela Corte Regional como configuradoras de abuso de poder religioso, o que seria essencial, na linha do precedente do TSE", decidiu o ministro do TSE.

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(FOTO): O presidente Bolsonaro e outros candidato, na campanha de 2018, ao lado de líderes religiosos em culto evangélico.

O tema ainda é controverso, de interpretação subjetiva, no julgamento dos casos concretos e em seu enquadramento ao novel instituto, mas que vem merecendo atenção cada vez maior, no decorrer dos pleitos brasileiros mais recentes. se por um lado há um regramento claríssimo que impede a realização de campanha em templos ou em instalações religiosas, há uma certa perplexidade em analisar caso a caso, a presença de pré-candidatos ou candidatos em eventos ou cultos religiosos, sua apresentação e participação para que se possa delimitar sem tanta incerteza as fronteiras daquilo que é ou não abuso, garantindo-se o processo democrático e a laicidade.

Afinal, o TSE decidiu que o instituto em questão está abrangido no gênero "abuso de poder", ou mesmo porque há previsão expressa de proibição de propaganda em locais privados de uso comum, como shoppings ou igrejas. O Tribunal entendeu, em um julgamento de um caso concreto, sem inferir o abuso do poder religioso, por falta de previsão legal expressa e pelos motivos elencados. 

Ainda digo que somente no exame de cada caso concreto é que pode-se inferir o abuso, se existente, e coibir tais práticas, que causam sempre, sem dúvida, desequilíbrio indesejado no pleito entre os contendores. (revisão em 11/9/2020)

Comentários

  1. Bom dia meu amigo Vinícius cordeiro. Gostei muito do seu artigo e lhe dou os parabéns por ele,no entanto gostaria de fazer uma observação sobre o referido artigo.Entendo toda esta questão de abuso de poder econômico e religioso mas no que tange as igrejas evangélicas por exemplo acredito que muitos líderes evangélicos no Brasil decidiram mudar os rumos na política elegendo candidatos que estão de acordo com sua visão devido o congresso nacional estarem propondo leis que interferem diretamente na questão mais defendida pela igreja no Brasil que é a família.De uns anos pra cá notou-se um congresso nacional (parte dele e não o todo) tendencioso demais em mudar uma estrutura que aos olhos da igreja no Brasil é sagrado e aí meu amigo despertaram um gigante adormecido....30 a 45 milhões de pessoas ou mais que decidiram dizer não a criação de leis inclusive alinhadas com a idéia de malt setung como há dias atrás da criação do estatuto da família do seculo 21 projeto este do deputado federal Orlando Silva que permite o casamento entre pais e filhos e muitas outras aberrações.É por causa de projetos como estes que os líderes das igrejas no Brasil decidiram lutar contra e isso não tem jeito,so é possível combater esse tipo de pratica com representantes legais das igrejas do Brasil legitimados e eleitos pelos fiéis das igrejas. Mas outros seguimentos religiosos também lançam seus candidatos e fecham questão entre esses nomes assim como sindicatos e outras instituições também lançam seus candidatos...por isso discordo com essa perseguição por parte dos candidatos evangélicos do Brasil...e aí se isso virar moda daqui a pouco sindicatos igrejas entre outros seguimentos não poderão mais lançarem seus candidatos...e nesse caso as oligarquias políticas e os candidatos corruptos continuarão no poder por abuso de poder econômico que é o que tem acontecido no Brasil ou estava acontecendo de uma forma muito patente nos últimos pleitos sem incluir o último que ao meu ver o povo acordou e decidiu fazer valer a sua vontade e não a da emissora que dizia que comandava as eleições no Brasil e hoje ataca covardemente o governo do atual presidente...mas meu ponto de vista sobre esta questão de abuso de poder econômico e religioso é de que realmente o TRE e MPE fiquem de olho nos abusos mas sejam imparciais....o que não concordo é a perseguição aos candidatos cristãos que se colocam no pleito com o intuito de defender uma bandeira que na verdade é justa pois defender a família sempre será uma honra para qualquer candidato sério que realmente se propõe a fazê-lo.Que o TSE e os TRE nos Estados e o MPE realmente façam o seu trabalho mas imparcialmente o que não temos observado pois a compra de votos continua nas eleições e principalmente o abuso de poder econômico por parte dos candidatos corruptos e a justiça eleitoral me parece que continua fazendo vista grossa ou não tem staf para fiscalizar tais práticas que ainda ocorrem no brasil inteiro!!!

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    1. as comunidades religiosas tem todo direito de ter sua agenda, sendo cristãos, budistas, seja o que for. mas utilizar-se da estrutura social, e dos púlpitos para promoção pessoal ou eleitoral, é o problema. traz uma vantagem indiscutível. o abuso de poder religioso não é "perseguição" - certas igrejas é que tem de saber se conduzir e respeitar as regras. Sempre houveram candidatos evangélicos, ou católicos que respeitaram a legislação, sem problemas de abuso. Sinceramente, refuto a palavra PERSEGUIÇÃO para desculpar-se por abusos que já presenciei. E o fato de toda a corrupção não ser punida não escusa de respeitarmos regras. Essa lógica é estranha para um "cristão". Quer fazer campanha e se promover? faça como todos. O mesmo regramento vale para patrões e donos de empresa. Vale para detentores de mandato. Tinha que chegar nas Igrejas tambem.

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