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NOVAMENTE, A DISCUSSÃO SOBRE O RECALL

              Novamente, vemos ao debater mais uma reforma política no país, o debate sobre o chamado "recall" (rechamada ou reconvocação, se assim se preferir), como forma de aperfeiçoamento da democracia. Novamente, por uma segunda vez, o Estado mais importante dos Estados Unidos, a California, votará pelo "recall", pela destituição de um governador democrata, Gavin Newson, repetindo o que houve em 2003, com a saída do governador Davis, e uma posterior eleição, com a chegada ao poder estadual do ex ator Arnold Schwazzenegger, republicano. 

Mas o que é o recall? O recall é o instituto de direito político, de natureza contitucional ou não, possibilitando que parte do corpo eleitoral de um ente político (País ou a União Federal, Estados, Províncias, Distritos ou Municípios) convoque uma consulta popular para revogar o mandato popular antes conferido, ou claramente, uma forma de controle popular dos mandatos; No comento de PAULO BONAVIDES, o recall "é a forma de revogação individual. Capacita o eleitorado a destituir funcionários, cujo comportamento, por qualquer motivo, não lhe esteja agradando".  Outra conceituação colacionada, é a de que, o recall consiste em "forma de poder político exercido pelo povo para revogar a eleição de um Deputado ou Senador estadual, para destituir um funcionário eleito ou ainda para reformar uma decisão judicial sobre a constitucionalidade de uma lei". O recall, sem dúvida, é uma das modalidades da chamada "democracia direta" (ou mesmo semidireta, como classifica Dalmo de Abreu Dallari.

Aqueles que o defendem dão razões diversas como o controle mais efetivo do eleitorado sobre seus representantes, a melhor educação política da população reduzindo a alienação, com o conseqüente aumento da participação popular no Governo. Alguns de seus críticos a consideram "um terceiro turno", ou causador de instabilidades institucionais apenas pela sua possibilitação.

O fato é que suas origens são controversas. Para alguns, tem correspondência com as votações gregas do ostracismo (deposição com exílio), mas outros pesquisadores atribuem-no aos suíços, como Haynes; Como veremos, além da sua expressão positiva na América do Norte, ainda no Século XVII, enxergam a inspiração marxista, pelo fato do próprio Karl Marx citá-la, ao lembrar que a revogação dos mandatos dos Conselheiros Municipais era possível a qualquer momento, na Comuna de Paris. 

A aplicabilidade mais comum do instituto se dá em sistemas eleitorais que adotam o voto distrital, para escolha do legislativo, sendo também utilizado quanto aos cargos do Poder Executivo, o "recall" (re-chamada) foi introduzida nos EUA, através da legislação californiana no começo do Século XX (1911). A atual regulamentação no mesmo Estado data de 1974, e é iniciada por uma petição apoiada por pelo menos 12% dos eleitores que tenham votado no pleito mais recente, com prazos para a coleta de firmas e distribuíção proporcional em cada condado do Estado. Nrecall para os legisladores estaduais o número de firmas aumenta para 20% do corpo eleitoral; de forma peculiar, ao mesmo tempo em que se decide a destituição do governante ou parlamentar, os eleitores escolhem seus eventuais substitutos, de forma simultânea, desde que ao final da primeira metade do mandato, e tambem é aplicado aos cargos populares como o de prefeito, xerife, e mesmo o de juízes, sendo já sido revogados os mandatos de 02 Senadores estaduais, em 1913 e 1914, além de dois deputados estaduais, em 1995, antes da revogação do Governador Democrata Gray Davis, em 2003.

É importante destacar que os Estados Unidos foram mesmo pioneiros nesse tipo de legislação, desde as Leis da Corte Geral da Massachussets Bay Colony, em 1631 e na Carta de Massachussets em 1691. Embora debatida a idéia nos primórdios da nação americana, inicialmente só os Estados de New York e da Virginia previram o recall para seus Senadores Federais, pelas Assembleias Estaduais. O instituto reapareceu com vigor no Século XIX, sendo a primeira destituição de Governador verificada no Oregon, em 1821.  A guisa de exemplo, tambem citamos os pleitos em recall para governadores da Dakota do Norte em 1921, e mais recentemente, alem da California, tivemos outro pleito para o Executivo Estadual no Wiscounsin, em 2012, ou no ano seguinte para duas vagas para o senado estadual no Colorado, e mais recente, o rumoroso recall para a prefeitura de Flint, Michigan (2017), após o escândalo da água. Um dos grandes entusiastas e adepto do recall foi o ex-Presidente Theodore Roosevelt, que pregava abertamente sua adoção, influindo pela sua aprovação no Estado do Colorado. Além da Califórnia, o instituto tem aplicabilidade em pelo menos 26 Estados, em qualquer modalidade ou forma, e em mais de 1000 Municípios ou Condados (entre as municipalidades, a primeira foi a de Los Angeles, CA, em 1902). Os procedimentos variam de Estado para Estado. Geralmente é requerido o apoiamento de uma fração superior a 10% dos eleitores, com exceção de Montana, que exige um número mínimo de peticionários para deflagrar o processo.

O modelo norte-americano tem sido discutido e debatido em todo o mundo, tendo sido o recall legislativo recentemente adotado na província canadense da Columbia Britânica, em 1995. Nesta província, o recall é valido para destituir um parlamentar da legislatura provincial, desde que consiga o apoio de 40% dos eleitores que tenham votado no distrito na última eleição, desde que o deputado já possua 18 meses de mandato. O interessante é que a versão canadense assegura a destituição do parlamentar sem necessidade de votação, mas apenas com a apresentação e autenticação das assinaturas dos eleitores requeridos em Lei.

No mundo, anotamos que a Alemanha, havia adotado parcialmente o instituto após a 1a Guerra nos länder (Estados) da Baviera (1919), Prússia e Saxe (1920), consagrando-o através da sua Constituição de 1926, de Weimar, que estabelecia a possibilidade de destituir-se o Presidente do Reich, a pedido do Reichstag (o parlamento alemão), através de consulta popular (Art. 71). Caso seu mandato não fosse renovado, o parlamento é que era dissolvido.

Muitos países do antigo Bloco Socialista seguiram o exemplo da União Soviética, que previa no artigo 105 da Constituição da extinta U.R.S.S. a possibilidade de revogação do mandato dos deputados, que eram (teoricamente) obrigados, a qualquer momento a prestar contas aos eleitores; igual norma figura na Constituição Cubana (Art. 85), que prevê a perda do mandato popular dos deputados à Assembleia Nacional, de acordo com a Lei n. 89, de 14 de setembro de 1999 (Art. 85), é conferido à Assembleia do Município por onde o deputado nacional foi eleito (Art. 6º, b, da Lei n. 89), podendo ser iniciado o processo pelo Conselho de Estado, por outro deputado ou por um quarto dos delegados da Assembleia do Município, a qualquer tempo.

Uma outra forma de revogar mandatos eletivos, até podendo-se dizer, em uma modalidade de recall, foi na Venezuela bolivariana, que, sob as instâncias do então presidente Hugo Chávez, contemplou, em sua nova Constituição de 15 de dezembro de 1999 (Art. 72) o referendo revogatório presidencial, que pela primeira vez foi realizado em 2004, que foi manejado pela oposição, que conseguiu sua convocação, mas não a destituição do governante, em votação popular; No modelo venezuelano, são necessárias assinaturas de 20% do total de eleitores convocando o referendo para que este seja marcado pelo Conselho Nacional de Eleições (CNE), que também verificará a autenticidade das assinaturas, sendo válido "para qualquer cargo ou magistratura de eleição popular", decorrido metade do período do mandato.

Na América Latina, antes da Venezuela, a Constituição panamenha de 1972, reformada em 1978 e em 1983 (Art. 145), já previa a possibilidade de revogar mandatos através dos próprios partidos políticos, figurando, entre os motivos autorizadores para tal, a infidelidade partidária. Na Argentina, o referendo revogatório ou consulta revogatória, é previsto pelo Art. 67 do Estatuto da Cidade Autônoma de Buenos Aires, para o cargo de Chefe de Governo e seu substituto, como forma de cidadania participativa. É provocado mediante requerimento de 20% do eleitorado inscrito, devendo as firmas ser coletadas no prazo de um ano, no máximo. Na Grã-Bretanha, as consultas populares somente são realizadas desde 1975, sendo que no final da década de 90, as consultas locais têm se intensificado. Vários grupos, principalmente os dos eurocéticos, têm defendido a instituição do recall na Inglaterra.

No Brasil, para surpresa de muitos, a revogação antecipada do mandato popular foi previsto nas primeiras Constituições Estaduais de Goiás, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. As Constituições de São Paulo (1892) e a do Rio Grande do Sul (1897) previram o recall, sem que, no entanto, chegassem a ser efetivamente aplicadas

Menos conhecido, há outro instituto de revogação, não só de um mandato, mas de toda uma Assembléia, de um corpo legislativo, de forma coletiva, em um golpe ou medida somente; É o Abberufungsrecht, pelo qual, desde que requerida a dissolução da Assembleia por um determinado número de eleitores, poderá se convocar o eleitorado sobre a conveniência da conclusão ou não de uma legislatura; É aplicado em sete cantões (tais como Berna, Zürich e Aargau) e em um semicantão (distrito) suíços, além do Liechtenstein. No Brasil, o tema já foi apresentado através da PEC n. 73, de 2005, de autoria do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), sendo arquivada.



Aliás, a adoção do recall no ordenamento jurídico brasileiro já foi defendida nos debates da Constituinte em 1987, sob o nome de "voto destituinte", sem maior sucesso, e mais recentemente, já em 2002, pelo candidato presidencial Ciro Gomes (mais tarde na campanha de Vera Lucia do PSTU, em 2018), assim como pelo Juiz Walter Mayerovich, assim como já tramitaram no Senado Federal duas propostas sobre o tema: um projeto do Senador amazonense Jefferson Peres (PDT-AM) prevendo a possibilidade de revogar os mandatos dos ocupantes de cargos do Poder Executivo ou dos Senadores. Já o Senador Antonio Carlos Valladares (PSB-SE) inspirou-se no instituto suíço finalmente citado, previu, diferentemente, a possibilidade de revogação dos mandatos legislativos, individual ou coletivamente, como do Congresso Nacional ou de uma Câmara Municipal, e foi apresentada na PEC 21/2015, aprovado na CCJ do Senado, e pendente de deliberação pelo Plenário.  Enfim, os juristas Dalmo de Abreu Dallari e Miguel Reale Junior defenderam a adoção do recall na eventualidade de que o país adotasse o sistema distrital misto. 

Aprovado ou não no Plenário, o fato é que qualquer proposta de revogação popular de mandato pode educar, aumentar o grau de participação popular no sistema democrático, alem de alterar a forma como o sistema majoritário quase que intocável em países de presidencialismo evolua para um mecanismo de substituição parlamentar, que em tese seria mais próprio do modelo parlamentarista. Por detrás de todo esse debate jaz a insegurança e a desconfiança das pessoas para com os candidatos eleitos, de forma a se poder renovar as oportunidades institucionais antes do prazo que em geral, dura um quatriênio, com o eleito não podendo mais ser destituído. No recall, abre-se a oportunidade de se ampliar o pronunciamento popular, e o acompanhamento maior das ações dos eleitos, sem dúvida, sem que haja necessidade da ocorrência de um crime de responsabilidade, como no impeachment.


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